.:: Tilt #01 ::.
27.3.10 by .g
Conheci os dois quando comecei a jogar pela cidade em mesas baixas só pela diversão e pra aprender o máximo possível do jogo. Jogamos várias semanas juntos e estabelecemos uma relação que pode parecer amizade para quem olha sem muita atenção. Com o tempo o meu bankroll atingiu um valor maior do que eu esperava e eles perceberam, modéstia às favas eu estava me tornando um jogador decente e com lucros respeitáveis.
Ofereceram cuidar de todo o meu dinheiro cobrando comissão em cima, uma porcentagem que me pareceu (e ainda parece) justa. Eu não precisaria cuidar de nada, apenas sentar nas mesas e jogar. Depois que assinei o contrato nunca mais tive de carregar dinheiro nos bolsos pra entrar num jogo. Isso mesmo, um contrato, daqueles que deixam a coisa oficial. A única diferença era que meus contadores são jogadores de poker.
Confesso que ter o dinheiro lá, seguro e não ter que ligar mais pra ninguém pra conseguir um lugar numa mesa concorrida justifica o que pago a eles. Se o dinheiro estivesse na minha mão era bem capaz de ter toda a coleção de consoles da geração atual na minha estante (jogar videogame é outro vício, só que beeem mais antigo). Não sou um jogador profissional, mas lidar com o jogo dessa forma além de me fazer ficar na linha em relação a gastos e riscos a correr me deixa muito tranquilo.
Resolvi chegar cedo no trabalho, adiantar as coisas a resolver do dia e liberar a mente para o jogo da noite. Seria a minha primeira vez numa mesa conhecida pelos valores altos jogados e pelos bons jogadores. Possivelmente se eu perdesse muito teria de voltar para as mesas de final de semana em bares. Para sentar numa mesa dessas você tem que conhecer alguém e depois do almoço recebi uma ligação de um "amigo" confirmando a minha presença. Oficialmente eu estava dentro.
Pouco antes do final da tarde saí do trabalho os últimos raios de sol ainda brilhando, e fui caminhando para casa. O caminho é longo, mas com tudo que se passava em relação ao jogo na minha cabeça nem percebi quando cheguei em casa, suado. Tomei um banho longo, brinquei de fazer a barba e acabei só aparando alguns míseros pêlos (não tenho barba).
Sentei na cama, abri uma garrafa de suco de uva, liguei a televisão e coloquei um episódio de Seinfeld pra passar. Meu pequeno ritual antes de um jogo grande. Depois do banho, uma garrafa de suco de uva e um episódio de Seinfeld. Vinte e dois minutos para não pensar no jogo, para desligar totalmente. Funciona pra mim.
Escolhi um blazer, calças e quando estava escolhendo o tênis tocou o celular mais uma vez. Passava pouco das sete da noite. Dessa vez era o motorista, avisando que passaria em casa para me pegar. Pela voz reconheci que era um cara que já tinha me atendido antes. Eu não tenho carro e durante toda a semana ando por aí e pego ônibus para o trabalho. Mas nas noites de jogos grandes tenho um motorista particular com treinamento em segurança privada dirigindo um Mercedes à minha disposição. Comecei a caminhar para a saída de casa com o blazer nos braços e a cabeça começando a fervilhar. Nem notei o nome do lugar onde o motorista me levou pra jantar. Comi pouco. Pedi mais um suco de uva. Olhei no relógio e estava na hora.
Quando entrei no carro tirei o celular e chaves do bolso e dei pro motorista. Ele guardou no porta luvas e debaixo do seu banco puxou uma caixa preta retangular e me entregou. Nela tinha um isqueiro prata com um às de espadas pintado na lateral, uma carteira de lucky strike de rótulo cinza e um envelope branco com um maço polpudo de notas novas de cem reais e um cheque em banco com a minha assinatura. Nunca gosto de ver o cheque. Usá-lo significa que perdi todo o dinheiro que tinha em mãos e sairei da mesa devendo pra alguém. Entretanto ele tem de estar lá, como um aviso, dentro do meu bolso. Perguntei pro motorista se estava na hora e após a confirmação ajeitei o isqueiro e os cigarros nos bolsos do paletó e devolvi a ele o envelope branco com o cheque.
O lugar era perto do centro da cidade numa cobertura de um prédio antigo. Na portaria nem precisamos falar nada e o portão da garagem abriu. Ao sair do carro pro elevador junto com o motorista senti o dedo indicador da mão direita tremer, como que se estivesse clicando o mouse. Isso era péssimo, eu estava mais nervoso do que pensava e demonstrando isso fisicamente. Coloquei as mãos no bolso.
O elevador abriu dentro de uma sala imensa com cerca de dez pessoas espalhadas pelos sofás e cantos. O motorista entrou na minha frente e foi direto cumprimentar o dono da casa. Caminhei vagarosamente atrás dele e quando ele se virou pra mim e apertou a minha mão, sinalizando que iria para outro cômodo da casa cuidar das minhas fichas, dei um sorriso largo e agradeci. O dono da casa parecia ter quase cinqüenta anos e vestia uma camisa branca larga enfiada na calça com colarinho desabotoado. Parecia um advogado de alguma série de televisão. Fez um gesto rápido e apertou a minha mão conversamos sobre o nosso amigo em comum e apontou pra sala onde o jogo seria, disse para eu ficar "às vontade".
Comecei a caminhar até onde eu imaginava ser o banheiro quando uma das garçonetes me abordou e pedi um copo grande de água bastante gelado. No banheiro ajeitei o colarinho da camisa, as mangas do blazer e abri a carteira de cigarro. Acendi um e puxei um trago bem grande. Apaguei logo em seguida no cinzeiro e saí de lá.
O motorista estava com as minhas fichas nas mãos, do lado de fora me esperando. Perguntei:
- Tá tudo aí?
- A metade, senhor. A outra metade está pronta para quando o senhor pedir. Aqui estão as extras.
Ele me entregou um punhado de fichas de cinco que serviriam de gorjeta para as garçonetes e atendentes da casa. Eu não poderia tirar fichas da mesa para isso. Dei algumas pra ele, contei rapidamente a quantidade de fichas no rack e disse para deixar na mesa. Caminhei em direção à mesa e já haviam batido carta e escolhido o meu lugar. Hora de jogar.
[CONTINUA... num futuro distante]